28 de outubro de 2016

Há que entender que tudo o que somos é ficção, Pedro Chagas Freitas



Há que entender que tudo o que somos é ficção. 
Pessoas atrás de pessoas pedem-me conselhos. Acreditam que o que escrevo me torna em alguém especial, capaz de lhes entender o que fazem, o que sentem, até o que escrevem. Fico perdido, sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. E é por isso que escrevo. Escrever é estar perdido e procurar, a cada frase, um caminho. Ou um simples sinal de que pode haver um caminho, de que pode haver uma esperança. Escrever é procurar a esperança, todos os dias, no que não existe, no que se escreve para ver se existe. Não sou escritor, nunca fui escritor, não quero ser escritor. Sou apenas o gajo que escreve porque tem de escrever, porque os dias exigem que escreva, porque uma urgência qualquer o obriga a escrever. Escrevo como necessidade biológica, e às vezes custa tanto ter de escrever. Não dói mas custa, é uma dor de fora para dentro, como se as letras saíssem da pele, do por dentro dos ossos. E a literatura. O que raios é a literatura? Estou-me nas tintas para a literatura. Não quero escrever literatura, não quero os intelectuais do meu lado. Quando tiver a crítica do meu lado é porque cheguei a lado nenhum. Toda a gente quer venerar o intocável, apreciar o que é fácil apreciar, o que toda a gente aprecia, ler o que todos lêem porque alguém definiu que se deve ler. Ou se inventa tudo outra vez ou todos os livros serão iguais. Quem está quer continuar: é assim que se pára o sonho. Não quero fazer como os clássicos, não quero replicar o que tantos já fizeram. Quero partir de mim e chegar a mim. Só isso: partir de mim e chegar a mim, a mais longe em mim. Quero fazer o que bem me apetecer com as palavras que bem me apetecer, afrontar os críticos e espetar-lhes nas fuças que escrevo e hei-de continuar sempre a escrever. Nem que seja uma bosta, nem que seja uma sucessão de merdas que eles, coitados, não querem que seja literatura. Deus me livre de um dia ser escritor e dizer que tenho um dom em mim. (...) O meu único dom é viver, incansavelmente, e fazer dessa vida uma corrida até sabe-se lá onde. Uma corrida até sabe-se lá onde: de repente percebo que é isso o que a vida me é. Hei-de morrer a correr, com a meta à vista, malvada, sempre à vista e sempre tão longe. E os artistas. Antes gatuno do que artista. E há lá ladrão maior do que um artista? Que corja são os artistas. Essa raça purulenta a quem Deus ofereceu o céu e o inferno de criarem o que mexe com os outros. Nunca serei um artista. Nunca acreditarei que algo em mim é mais do que medo. Tenho medo de estar parado, medo de não abalar quem me ama, medo de não questionar o que me ocupa, medo de não rir diante da morte. Tenho tanto medo de morrer e é por isso que vivo. Escrever é também isso: ter medo de morrer. Escrevo para evitar a morte e é também escrever que me mata. Sou um pobre coitado que não tem onde cair morto mas que faz questão de desesperadamente encontrar onde se mexer vivo. 
O que interessa é a vida, nunca as letras. 

Pedro Chagas Freitas, in 'Prometo Falhar'  (Fonte: Citador)

(Colagem por S.C. Zerbetto)

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