21 de julho de 2017

Livros e leitores: Martta Wendelin





Os meu sonhos eram de muitas espécies mas representavam manifestações de um único estado de alma. Ora sonhava ser um Cristo, a sacrificar-me para redimir a humanidade, ora um Lutero, a quebrar com todas as convenções estabelecidas, ora um Nero, mergulhado em sangue e na luxúria da carne. Ora me via numa alucinação o amado das multidões, aplaudido, desfilando ao longo (...), ora o amado das mulheres, atraindo-as arrebatadoramente para fora das suas casas, dos seus lares, ora o desprezado por todos embora o eleito do bem, por todos a sacrificar-me. Tudo o que lia, tudo o que ouvia, tudo o que via — cada ideia vinda de fora, cada (...), cada acontecimento era o ponto de partida de um sonho. Vinha de um circo e ficava em casa ousando imaginar-me um palhaço, com luzes em arco à minha volta. Via soldados passarem na minha mente a falarem com uma visão de mim próprio, tratando-me por capitão, chefiando, ordenando, vitorioso. Quando lia algo acerca de aventureiros imediatamente me convertia neles, por completo. Quando lia algo acerca de criminosos, morria por cometer crimes até me apavorar com o meu desarranjo mental. Conforme as coisas que via, ou ouvia, ou lia, vivia em todas as classes sociais, em todas as idades, em todas as épocas, passava através de todos os tempos, ultrapassava todas as dificuldades, era mártir, vitorioso de mais de um milhão de maneiras.
Mas o erótico, o místico, (...) — todos estes sonhos eram rios tributários que desaguavam num vasto eu — ou seja, eram todos parte de um vasto eu - o foco central de todos estes sonhos era a exaltação da minha personalidade.

Fernando Pessoa - manuscrito, original em Inglês (1904-1908)

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