14 de dezembro de 2015

O interessante universo das fanfics




"Sempre comece pela Wikipedia." E.J. James, Cinquenta Tons de Cinza

Iniciei pelas palavras acima tão somente porque, como veremos, o livro citado talvez seja a mais célebre fanfiction da atualidade, embora a maioria aqui no Brasil não tenha ainda idéia do que significa o termo. Como se trata de uma importante, e interessante, manifestação da cultura pop, e como o objetivo deste blog é o de incentivar a leitura sobre todas as suas formas, sem qualquer tipo de discriminação ou preconceito, resolvi escrever a respeito. 




É verdade, a Wikipedia até que explica razoavelmente bem o que é uma fanfic, então seguido o conselho, será por aí que começaremos:

"Fanfiction, fanfic ou apenas fic é uma narrativa ficcional, escrita e divulgada por fãs em blogs, sites e em outras plataformas pertencentes ao ciberespaço, que parte da apropriação de personagens e enredos provenientes de produtos midiáticos como filmes, séries, quadrinhos, videogames, etc, sem que haja a intenção de ferir os direitos autorais e a obtenção de lucros. Portanto, tem como finalidade a construção de um universo paralelo ao original e também a ampliação do contato dos fãs com as obras que apreciam para limites mais extensos."


Vou revelar um lado oculto meu que poucos conhecem. Durante alguns anos, eu escrevi o que se conhece fanfictions. Escrevia sem intenção alguma de me tornar escritora, apenas para me divertir e exercitar minha escrita em inglês (em português não havia público para as minhas histórias). Era quase uma terapia. Na verdade, eu acho que, pondo no papel, ou não, eu criava as minhas tramas muito, mas muito tempo antes do termo existir. Foi só alguns anos depois do advento da internet que eu descobri que aquilo que eu fazia, na maior parte do tempo internamente, sem escrever uma palavra, tinha um nome.




Mas o que são as fanfictions (ou fanfics)? 

Até uns cinco ou seis anos atrás, quando eu ainda escrevia, eram um fenômeno da cultura pop praticamente restrito ao universo nerd/geek. Embora, de um certo modo, alguns colocam os anos 70 como o início das fanfics, o fato é que elas somente se popularizaram nos anos 90, com o desenvolvimento da internet. O fenômeno ficou um pouco mais conhecido só ó ha uns três anos atrás, quando uma dessas histórias saiu do site fanfiction.net, onde a maioria é publicada até hoje, virou um best seller mundial e depois um filme. Mas vou chegar lá... De qualquer modo, adianto que é um exercício muito interessante de criatividade na escrita, especialmente para aspirantes a escritores. Estes encontraram uma forma extremamente fácil, tanto de entrar em contato com outras pessoas interessadas no mesmo tópico e divulgar as suas histórias. Alguns cresceram tiveram aí o início de sua vida de escritor, passando a publicar seus trabalhos em forma de livros tradicionais ou ebooks. Tanto é que, nos Estados Unidos e Europa, muitos que hoje tem seus livros publicados, sairam do universo das fanfictions

Só se engana quem acha que se trata de um fenômeno exclusivamente adolescente. 

Não é verdade. 

Nas minhas incursões pelo mundo das fanfics, nas diversas comunidades virtuais nas quais li as histórias publicadas, deparei-me com escritores de todas as idades, literalmente de 8 a 80 anos. A explicação é simples: Quem nunca, em alguma fase da vida, leu um livro ou assistiu a um filme e ficou com aquela trama e personagens na cabeça? Quem nunca ficou imaginando como seriam as cenas que não apareceram na tela, ou que sequer foram escritas, ou como a história continuou depois dos créditos finais ou da última página? Eu faço isso desde criança, faz parte de ser introvertida e ter uma imaginação ativa. Bem se você já brincou com essas possibilidades, então é um escritor de fanfiction em potencial. Uma fanfic geralmente é escrita por algum membro do fandomFandom é o diminutivo da expressão em inglês fan kingdom, que significa “reino dos fãs”, na tradução literal para o português. O objeto de interesse pode, a princípio, ser qualquer coisa apta a atiçar a imaginação e gerar histórias.

Tudo pode acontecer em uma fanfic. Heróis podem virar vilões e vice-versa. Heroínas podem decidir que o vilão é mais interessante que o mocinho é mudar de idéia. Não gostou do final da história? Mude-o. Quer saber como vivem os personagens depois que o filme acabou? Invente. Seu personagem favorito morreu? Traga-o de volta. A história de passa nos anos trinta, mas você gostaria de transportá-la para a época atual? Perfeitamente possível. Você preferia que a mocinha ficasse com o vilão? Sem problema algum. Jane Eyre sob o ponto de vista de Rochester? Feito. Romeu e Julieta se encontrando no além? Porque não?  O mocinho é um vampiro meloso e sem graça que brilha no sol e você o acha mais interessante como um dominador sadomasoquista? Vá em frente (uma certa escritora já faturou milhões e milhões com essa idéia). Orgulho e Preconceito nos dias atuais? Hello Bridget Jones! Na literatura nacional, pode-se até dizer que "A Sucessora" de Carolina Nabuco é uma fanfic de Rebecca, de Daphne du Maurier. 




A questão dos direitos autorais pode sempre ser um entrave, é claro, com exceção das obras de domínio público, mas ajuda o fato de que as fanfics são sempre gratuitas e o que interessa à grande maioria dos escritores não é o lucro, mas a diversão, o exercício de criatividade, a possibilidade de habitar um universo paralelo construído do jeito que você quer com os personagens que mais gosta moldados a sua maneira. Sāo, no meu entender, inofensivas, e ajudam mais a promover o livro ou filme do que trazem prejuízos aos autores das obras. É claro que há as exceções, que, contornando o óbice dos direitos autoras, conseguem sair  do mundo das fanfic.

Veja E.L. James, por exemplo. Seja qual for a sua opinião sobre o fenômeno mundial que foi, e ainda é, a trilogia Cinquenta Tons de Cinza, saiba que a origem dos livros foi originalmente uma reles fanfic publicada no site fanfiction.net. Aliás, foi por curiosidade devido a esse fato que acabei tendo contato com a obra. Quando li por acaso em algum lugar na internet que uma autora de fanfics havia conseguido um contrato com um estudio de cinema, eu quis saber como e quem havia conseguido a façanha. A história foi retirada do site assim que a autora conseguiu os contratos para os livros e os filmes, mas a fic original (intitulada "Master of the Universe" - "O Senhor do Universo") ainda circula pelos cantos remotos da Internet em sua forma original, sem as alterações feitas quando da publicação dos livros. E.L. James fazia parte do fandom dos livros da saga Crepúsculo, de Stephenie Meyer. Decidiu escrever uma fic com os mesmos personagens, mas com o vampiro dando lugar ao dominador. 

Deu certo. Mais do que o original, inclusive. Coisa rara no mundo das fanfics.





Apesar de estar longe de ser uma obra prima da literatura, a trilogia foi escrita na linguagem típica das fanfics, que, basicamente, segue a máxima de "dar ao público o que o público quer". O que interessa numa fanfic, afinal, não é agradar os críticos literários, mas provocar a imaginação dos leitores,  especialmente os membros de um fandom. Curiosamente hoje, a trilogia de E.L. James, originalmente uma fanfic, gera a suas próprias fanfics. São "fanfics de fanfics", por assim dizer.

Há outros exemplos menos célebres,  é claro. Quando uma fanfic parte de um clássico da literatura, é bem mais fácil contornar o problema dos direitos autorais, e as histórias são publicadas. "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen, gerou dezenas e dezenas de continuações e variações,  algumas até esdrúxulas com personagens zumbis (que, por acaso, também está virando filme), outras verdadeiramente deliciosas, como os livros da personagem Bridget Jones,  de Helen Fielding.


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Eu passeei por vários fandoms durante a minha breve "carreira", mas publiquei somente em um deles no fanfiction.net. Era um fandom pequeno e amigável, sem muitas brigas internas (disputas internas são comuns em fandoms maiores, entre grupos que dão direcionamentos diferentes às histórias). Foi uma época boa, da qual tenho saudades, embora duvide que volte a escrever fanfics novamente, para qualquer que seja o fandom. No meu caso, por diversos motivos de ordem legal difíceis de serem superados, não dava para cogitar a publicação, embora as críticas às minhas histórias fossem encorajadoras. Seria um pesadelo jurídico que eu não estava disposta a enfrentar,  queria só me divertir mesmo.  

fandoms gigantescos. O dos livros de Harry Potter, por exemplo, tem mais de 500.000 histórias publicadas, o da série Crepúsculo, de onde saiu E.L. James, mais de 200.000. Gigantescos em comparação com o pequeno fandom para o qual eu escrevia, cerca de 800 histórias publicadas até hoje. E, é claro, existem aqueles fãs pra lá de apaixonados que acabam por provocar verdadeiras guerras internas, que podem ser muito agressivas. Eu, por exemplo, flertei com o mundo das fanfics escritas sobre "O Fantasma da Ópera", mas não tive coragem de publicar nada. Há uma verdadeira guerra entre aqueles que seguem a versão do livro de Gaston Leroux, a versão dos vários filmes e a versão do musical de Andrew Lloyd Weber. Brigam até sobre a extensão do desfiguramento do personagem do "fantasma" Erik, por exemplo. Publicar qualquer coisa era puxar briga certa com um determinado grupo, e eu não queria me estressar por uma coisa tão pequena que visava só me divertir e me distrair. Brigas assim existem na maioria dos fandoms, na maioria das vezes entre aqueles que querem se manter estritamente fiéis à história original e aqueles que a querem levar para o que se chama, dentro do universo das fanfics, de universo alternativo.



Curioso? Acredite, se você é apaixonado por uma história de um livro ou filme, o mundo das fanfics pode ser extremamente divertido. Tem uma linguagem e vocabulário próprios com a qual, aos poucos, os iniciados se familiarizam. Todos os termos, obviamente, se originaram do inglês, e alguns são difíceis de serem traduzidos. A exemplo:

Canon: Cânone. Histórias fiéis à obra origina, seja quanto à situações, trama, cenários ou casais formados.

Cross Over: São fanfics que misturam situações e personagens de universos, ou fandoms diferentes. Por exemplo, personagens de Star Wars e Star Trek convivendo. Não é um gênero que me agrada muito, não me lembro de ter lido uma cross over razoável sequer.

Darkfics: Como sempre fui fã da literatura gótica, esse gênero eu gosto, tanto é que alguns dos meus escritos tinham muito de darkfic. São histórias com elementos mais sombrios e elementos mais angustiantes.

Drabbles: Fanfics curtinhas, com pouquíssimas palavras.

Fluffy: Fanfic extremamente melosa e açucarada, talvez o oposto das darkfics.

Lime: Histórias com cenas de sexo apenas insinuadas, não descritivas.

Maintext e subtext: No caso das fanfics que descrevem relacionamentos românticos, as maintext tratam de casais que aparecem na obra original, enquanto que as subtext tratam de casais cujo envolvimento na obra original, quando existe, é apenas insinuado.

Mary Sue e Gary Stu: São personagens principais, feminimo e masculino, respectivamente, altamente perfeitos, idealizados, inatingíveis. 100% herói ou heroína, sem nenhuma mácula de caráter. Todo escritor mediano de fanfic sabe que é o tipo de personagem que deve evitar. Eu, como leitora e escritora, também sempre fiquei longe das Mary Sues e dos Gary Stus.

OC (original character):  Histórias que, além dos personagens originais do fandom, contém outros personagens originais criados pelo próprio criador da fanfic para compor a história.

OOC (out of character): Quando, na fanfic, o personagem se comporta de forma completamente diversa do personagem da história originária.

One shot: Histórias com um capítulo apenas. Um excelente exercício para começar a escrever, minha primeira história foi um one shot.

POV (point of view): Indica de quem é o ponto de vista, ou seja, qual personagem está funcionando como narrador, ainda que a história não tenha sido escrita em primeira pessoa.

PWP (porn withot plot): Na verdade, nem é fanfic, apenas cenas de sexo entre personagens de um determinado fandom, sem qualquer enredo definido. Geralmente são histórias de baixíssima qualidade.

Sagas: Fanfics muito longas com dezenas ou até centenas de capítulos. As minhas histórias eram uma saga que nunca terminei (e provavelmente nem vou terminar...

Self inserction: Quando o escritor participa da trama como personagem.

Slash e Femmeslash: Fanfics com personagens principais envolvidos em relacionamento homossexual.

UA (univero alternativo): Histórias passadas em um universo diferente da história originária. Romeu e Julieta nos tempos atuais, por exemplo.

What If: E se? Histórias que tomam um rumo diferente em relação à original. E se Darth Vader não morresse no final de "O Retorno do Jedi", por exemplo.

E o que você pode encontrar no fanfiction.net?

De tudo. Procure um filme ou livro de seu interesse, e duvido que você não encontre ao menos uma história. Aliás, como a maioria está em inglês e, obviamente, são escritas em linguagem mais coloquial do que a de um livro, é um bom lugar para você se iniciar na leitura do idioma, seguindo as dicas do meu post sobre o assunto. Existem dois sites em português que publicam fanfics, o Spirit e o Nyah, embora eu pessoalmente desconheça a qualidade e a quantidade das histórias ali publicadas. Parece-me apenas que, aqui no Brasil, ao contrário da Europa e Estados Unidos, as fanfics ainda são um fenômeno quase que exclusivamente adolescente.

A qualidade varia muito, isso é verdade. Há histórias surpreendentemente boas, e, é claro, muita porcaria também. Em um fandom muito popular, achar algo que valha a pena ser lido é como achar uma agulha em um palheiro. Porém, se você é um apaixonado pelo fandom da sua escolha, as busca é sempre divertida. Para quem quiser, eu estou aqui para ajudar, sabem onde me encontrar.

Boas leituras!  

:-)

S.

Obs: Clique aqui para artigo com uma visão um pouco mais aprofundada sobre o tema.

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